quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Nu futuro



No futuro, os carros vão continuar a não voar.
No futuro, ninguém vai lembrar o passado, 
ninguém vai pensar no futuro.
No futuro, só existirá o presente.
O presente será um presente 
que nos oferecemos continuamente.
No futuro, ninguém vai à Lua ou a Marte,
ninguém vai à merda ou a Fátima.
No futuro, ter-se-á deixado de lutar
pelas coisas antigas,
porque não haverá mais coisas antigas.
Haverá coisas modernas já com dezenas de anos.
No futuro, irão querer acabar
com os intervalos de ficção,
por interromperem o fluxo de publicidade.
No futuro, ninguém deixa de fumar, 
fumar rejuvenesce. É um batismo.
Ficar doente não existe. Existe
ficar com saúde e precisar de tratamento.
Ser diferente é ser igual.
No futuro, nenhuma pele estará limpa.
Almas terão partido há muito.
Todos seremos o imperador Ming no futuro,
e Flash Gordon a única corporação ainda de pé.
Táo imóvel como gorda, mais a sua
imensa boca de aspirador.
Ninguém aspira a ser nada e nada é coisa
que não existe. Estaremos sempre cheios de tudo
a toda a hora. Orgasmos?
Coisa datada e sobrevalorizada.

Isto sou eu a vir-me. Não digas nada.
Isto sou eu a vir-me agora, amanhã, agora.
No futuro não me venho mais, 
no futuro, o orgasmo vai sair caro,
vai pagar imposto depois de ter pago tributo.
Não vai haver jornal para a notícia.
Não vai haver luz no candeeiro.
Não me vais entrar nua porta dentro, 
mãos a esconder a barriga.
Não me vais meter dentro de ti
e eu não me vou vir,
porque no futuro não vai haver orgasmos.
No futuro, ter-te-ei chamado
refinada puta no passado e vou 
recordar o caos do teu vir.
No futuro, não haverá roupa
para tanta nudez. Nu futuro
ninguém vai ter piada.

domingo, 25 de abril de 2021

Requiem

 

 Qua, 09/01/2019 22:32
Sei que este tema (requiem por um amor assassinado) te é familiar. Se gostas muito, podes utilizar num desenho teu. Podes pôr aspas e um enigmático MS.

"REQUIEM
o teu gesto de oração
ao acender o vinho
e respirar os caminhos do mar
onde andávamos
a trote sem relógio nem memória
a casa semeada de pacotes mistério
no amanhecer do dia dos meus anos
o teu tronco nu
debruçado sobre o jornal em músculos
e nervos suados pela noite
o nosso chá nas mãos
misturado com sílabas exaltadas
o coração terno solene
percorrendo as missas de Bach
e velhos slows esquecidos
tudo isto partido num só golpe
num só murro bem no centro da mesa
das celebrações
tudo isto decepado a frio
com a faca da desolação
tudo isto lançado ao sal
de um quadro de Turner
caído no chão
depois o silêncio
depois o grito das aves
ao fechar do dia
no Castel Sant'angelo
depois nada"
 MS

domingo, 4 de abril de 2021

A mulher e o seu cão



O cão, elevado, na retaguarda vigilante

numa canzana por cumprir.

A mulher, verdadeira fugidia esfinge,

pés ausentes fincados. É a sua

imobilidade e expressão a convocarem atenção,

e de seguida, os novos cabelos brancos

na negra cabeleira tão saudosa

por ter sido grades da jaula para mim criada.

Não fugi, expulsou-me e manteve intacto

o enigma incandescente.


O cão olha para um qualquer horizonte longínquo.

Essa é a sua essência segura e tranquila.

Ela, quem sabe para onde olha?

Para dentro de si, talvez.

Para todos os segredos plantados

pelos caminhos. Alguns deles eram pura delícia,

alguns deles eram ácido e amoníaco.

Olha o futuro, os caminhos perdidos, estropiados.

Olha o futuro encarquilhado, incerto. Em desafio.

É essa a incerteza no seu olhar:

temor, inquietação, mágoa.

A arrogância num enigma

no qual se deixou emparedar.

A esfinge é o olhar.

segunda-feira, 8 de março de 2021

Notre Dame des Épines,



Notre Dame des Épines, veille sur moi.
Mon chemin s'est terminé,
Mon destin m'a échappé..
C'est tout, ce n'est rien..
Peut-être trouves tu que je l'ai mérité.
Peut-être que je l'ai mérité, je ne sais pas.
Punition divine, sans doute.
Bénissez-moi, couronne moi, crucifie moi.
Le sang ne vient pas du corps,
il vient du sentiment.
Je sais que je t'ai toujours aimé
et en quelque sorte,
c'était ma malchance
Un amour fou comme celui lá
c' etait le plus beau,
la taille d'un mensonge.
Et tu diras: Tampis!
Je ne peux pas t'imaginer
avec une masque et pourtant...
J'arrêterai quand il n'y aura plus de douleur
Je suis notre pire ennemi.
Pour aimer il faut pardonner
Divin, c'est reconnaître qu'on a échoué.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2021

Sorry

I'm sorry ir I'm not black
I'm sorry if I'm not gay
I'm sorry if I'm not insane
I'm sorry if I'm not a minority
I'm sorry if I'm not beautiful
I'm sorry if I'm not thin
I'm sorry if I'm not dumb
I'm sorry if I'm not a follower
I'm sorry I eat meat
I'm sorry I don't like alcohol
I'm sorry I stopped smoking 30 years ago
I'm sorry if I'm not under 30
I'm sorry if I'm not under 20
I'm sorry if I'm not a tattoo vehicle
I'm sorry if I'm not a graffiti vehicle
I'm sorry if I'm not a hip hop junkie
I'm sorry if I'm not a pop junkie
I'm sorry if I'm not a fashion junkie
I'm sorry if I'm not a smartphone junkie
I'm sorry if I don't believe in your laughter
I'm sorry if I don't believe in your happiness
I'm sorry if I don't believe in your gratitude
I'm sorry if I don't believe in your gods
I'm sorry if I don't believe in your intentions
I'm sorry if I don't believe in your new ageness
I'm sorry if I don't believe you are who you are
I'm sorry if you feel lost
I'm sorry you don't know you're lost
I'm sorry you will never be happy
I'm sorry you still don't know what's really important
I'm sorry you need others to tell you what's important
I'm sorry you need validation
I'm sorry you worship money
I'm sorry you worship things
I'm sorry you feel lonely
I'm sorry I'm lonely too
I'm sorry we don't get along
I'm sorry nobody cares
I'm sorry you don't know that a «fuck you»
can have more love in it than a «I love you»
I'm sorry you don't know what love is
I'm sorry nobody does
I'm sorry if I survived
and I'm sorry if I'm nothing but myself
but for that I will never be sorry
Sorry for the contradiction in terms

sábado, 20 de fevereiro de 2021

S/ título


Ofereceste-me o arco-íris 
e eu dei-te o amanhecer. 
Entre um e outro regamos 
o orvalho de dor e alegria. 
Nunca cheguei a partir
nem a tua chegada foi surpresa. 
Estamos um no outro. 
Porque não há-de ser essa 
a maior das dádivas?


quinta-feira, 11 de fevereiro de 2021

Por todo o lado


 Gostava de te ter conhecido há mais tempo. 
Num qualquer Verão onde os dias são eternos
e sonhar é coisa sempre ao longe. 
Porque pressa só o suor a leva
no brazeiro trepidante da estrada. 
Hoje sou um velho carvalho outonal
e a brisa vivida muito antes,
é agora um lento castigo.

Por todo o lado há pedaços de mim
nas mais belas tonalidades.
Enfrento a nudez sem medos.
O horizonte abraça-me.
As minhas palavras são as tuas
e as tuas, sem o saberes, são as minhas.
Nunca deixamos de nos beijar.
Tudo é cheiro de memórias em cores
levadas pelas asas das borboletas.
Ou na certeza do arco-iris
em certas tardes de clamores distantes.
Talvez nunca tenhas existido.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2021

Momento de ver


Sim, hoje olho o céu e não vejo azul, não vejo nuvens, não vejo infinito. Vejo-te a ti como um vasto zepelim feito miragem a cobrir-me na lenta passagem de um dia que se recusa a terminar. É a casota dos pardais pregada na árvore perdida na imensidão do pinhal, perdido na imensidão de um canto da savana irredutível ao dia, na solidão ausente das estrelas ou da Lua. Fica a semente, qual bomba-relógio, da inevitabilidade de regressar ao lugar anterior ao primeiro passo.